Andréa de Andrade Rangel de Freitas¹, Môsar Lemos².
¹Faculdade de Veterinária, Universidade Federal Fluminense.
²ABFPAR - Associação Brasileira de Falcoeiros e Preservação de Aves de Rapina.
Introdução
O cleptoparasitismo é um mecanismo de interação no qual um organismo rouba algum recurso, geralmente alimento, que outro capturou ou mesmo deixou armazenado. O cleptoparasita se beneficia tanto por obter uma presa ou outro recurso que não conseguiria sozinho como pelo ganho de tempo e diminuição do esforço para consegui-lo. Esse tipo de interação é utilizado como estratégia de forrageamento por diversos grupos de animais vertebrados como aves e mamíferos e invertebrados como insetos e aracnídeos. O cleptoparasitismo é denominado intraespecífico quando os dois organismos envolvidos são da mesma espécie ou interespecífico, quando são de espécies diferentes (Danko e Mihók, 2007).
Revisão de literatura
Segundo Jorge e Lingle (1998) o cleptoparasitismo a outras aves foi uma das formas utilizadas por Haliaeetus leucocephalus para obter alimento nos lagos e rios, em Nebraska, EUA. As vítimas foram Buteo regalis, Buteo jamaicensis, Buteo lagopus, Aquila chrysaetus e membros da própria espécie. O roubo de presas ocorreu com maior freqüência durante o inverno rigoroso de 1978-1979, quando o gelo sobre a água restringia a pesca das águias. O cleptoparasitismo ocorreu principalmente em áreas agrícolas, onde bandos de Anas platyrhynchos (patos Mallard) se alimentavam e podiam ser predados. As águias jovens que obesrvavam os adultos logo participaram do cleptoparasitismo e o utilizaram em invernos posteriores. Segundo os autores, isso sugere que esta forma de obter o alimento é um padrão de comportamento aprendido.
Embora os incidentes de cleptoparasitismo envolvendo Haliaeetus leucocephalus sejam freqüentes (Fischer, 1985; Sobkowiak e Titman, 1989; Watt et al., 1995), os episódios de furto de presa por aves contra mamíferos são relativamente raros (Brockman e Barnard, 1979). No entanto, Watt et al. (1995) relataram episódios de roubo de alimento de Enhydra lutris (lontra marinha) por Haliaeetus leucocephalus no Alaska entre junho de 1992 e março de 1994. Foram observados nove episódios de cleptoparasitismo pela águia. Todos os episódios ocorreram no inverno e envolveram lontras que foram até a superfície da água caçar ou ingerir peixes (Aptocyclus ventricosus). Em uma das tentativas, a águia mergulhou de um poleiro localizado em um penhasco e apanhou um peixe de uma lontra que foi à superfície com a presa. A lontra pareceu não perceber a aproximação da águia e não teve oportunidade de evitá-la. Essa interação entre águia e lontra marinha ocorreu somente entre janeiro e junho, quando as lontras estão em período reprodutivo. Durante este período o número de lontras e o consumo de peixes aumentaram drasticamente. Os outros alimentos de pequeno tamanho não foram de interesse das águias. A ação evasiva das lontras em atentados que falharam sugere que elas estavam atentas ao potencial prejuízo que as águias representavam e mantinham vigilância à comida. Segundo os autores, isso sugere que o efeito surpresa é importante para o sucesso do parasitismo da águia.
Entre janeiro e outubro de 1990, Estrella e Rodrigues (1992) relataram dez incidentes de cleptoparasitismo por Caracara plancus, sendo seis interespecífico (cinco sobre Cathartes aura e um sobre Parabuteo unicinctus) e quatro intraespecíficos de imaturos sobre adultos. Os autores sugerem que o cleptoparaitimo em carcará pode ocorrer e/ou ser promovido por interação na área de alimentação, uma conduta de forrageamento oportunista e a presença de recursos alimentares primários diminuídos.
Em dezembro de 2005 o segundo autor observou dois carcarás jovens entre um grupo de urubus (Coragyps atratus) na praia de Jaconé, Estado do Rio de Janeiro. Havia diversos sacos plásticos contendo lixo deixado pelos moradores para a coleta pelo caminhão da limpeza urbana. O grupo de urubus tentava abrir os sacos rasgando-os com o bico, enquanto os carcarás agarravam os sacos com as garras e jogavam para cima, como se estivessem tentando “matar a presa”. No momento em que os urubus obtiveram sucesso retirando restos de alimento de dentro do saco (pareciam restos de galinha) os jovens carcarás avançaram sobre eles tomando a “presa”. O comportamento parece ter sido copiado dos próprios urubus que lutam entre si na disputa dos pedaços de alimento. Os urubus foram vistos em outras oportunidades vasculhando e disputando os sacos de lixo, porém os carcarás foram vistos apenas naquela ocasião.
Durante um trabalho de observação de uma população de Aquila heliaca no leste da Slovakia entre abril de 1992 e março de 2003, Danko e Mihók (2007) relataram diversos episódios de cleptoparasitismo envolvendo a espécie. Segundo os autores esta forma de obter alimento é relativamente comum para estas águias. Em primeiro de abril de 1992, um Falco cherrug macho foi avistado em atividade de caça enquanto uma águia sobrevoava em círculos o local. Durante a tentativa de captura de um roedor pelo falcão, a águia iniciou uma perseguição, à uma distância de 1,5 Km da superfície de vôo e do ataque do falcão. A águia não obteve êxito, mas quando os filhotes dos dois casais da região cresceram, ambos caçaram juntos e então os falcões tiveram menos chance de carregar suas presas abatidas para o ninho. Segundo os autores, como consequência do cleptoparasitismo de A. heliaca, todos os jovens falcões morreram na fase de ninho naquele ano.
Frirz (1998) sugere que o comportamento de caça persistente voando e peneirando acima do solo de Falco tinnunculus demanda grande consumo de energia e foi o fator determinante do cleptoparasitismo desta espécie sobre Asio flammeus durante o inverno de 1996-1997 no oeste da França. Foram registrados 25 ataques, sendo nove bem sucedidos durante 16 tardes de observação (70 h). O roubo de alimento obteve maior êxito quando realizado por um casal, estando a fêmea sempre à frente dos ataques.
Clark e Schmitt (1993) no dia dez de janeiro de 1991, no leste de Gujarat, Índia observaram um macho de Circus pygargus (Montagu’s Harrier) adulto alimentando-se no solo. Ao se aproximarem para fotografar a ave a 15 m, ela voou levando a presa. Durante o voou, um Falco chicquera (Red-headed falcon) adulto iniciou uma perseguição que durou mais de um minuto e terminou com a queda da presa. O falcão desceu rápido e a capturou no ar, voando em seguida para um poste onde começou a comê-la. A presa roubada foi a metade posterior de um pequeno marsupial (Bandiocota sp).
Clark et al. (1989) em quatro de janeiro de 1984, em Vera Cruz, México observaram um jovem Falco femoralis macho voar e retornar para o mesmo poste com uma presa. Alguns minutos depois o falcão fez um vôo curto, direto e em linha reta na direção de uma garça azul (Egretta caerulea) localizada no solo à cerca de 20 m de distância. A garça voou com a aproximação do falcão deixando um camarão (Cambaru diogenes) que foi então pego pelo F. femoralis. Em seguida o falcão retornou para o poste onde consumiu a presa, repetindo a mesma conduta contra outras garças em uma atitude idêntica. Os autores ressaltam que crustáceos parecem ser uma presa atípica para estes falcões e que este foi o primeiro relato de cleptoparasitismo por F. femoralis.
Na província de Bizkaia, norte da Espanha, Zuberogoitia et al. (2002) estudaram entre setembro de 2000 e agosto de 2001 a composição da dieta de Falco peregrinus, relatando 931 presas de 97 espécies diferentes presentes nos ninhos. Em 1997 os autores encontraram ossos de coelho (Oryctolagus cuniculus) e de galiha doméstica (Gallus gallus) em um dos ninhos. Essas presas não são comumente encontradas na dieta dos peregrinos (Zuberogoitia et al. 2002 apud Raticliffe, 1993). Em 2001 foram encontrados novamente um coelho em pedaços durante o inverno e outro durante o período reprodutivo junto com seis restos de cordeiro. Devido à extrema escassez de coelhos na área de estudo, a presença do cordeiro e outros animais de criação, e a existência de um depósito de lixo localizado a um quilômetro do ninho do peregrino os autores suspeitaram que os alimentos não foram caçados e sim coletados. Para determinar como isso ocorreu, os pesquisadores montaram um ponto de observação próximo ao depósito de lixo. Além da caça de passeriformes e columbiformes, relataram um grupo de 70 Corvus corone (Carrion Crow) alimentando-se no lixo. Quando os corvos partiram para a montanha, um jovem peregrino que estava sendo criado no ninho aproximou-se do lixo, e investiu sobre os corvos. Ele gastou mais de 30 minutos mergulhando sobre os corvos, mas não obteve nenhuma presa. No dia seguinte, repetiu sem sucesso as mesmas investidas. Dessa vez por um período de 45 minutos. Os Corvus corone são aves fortes que podem causar injúrias aos peregrinos. Dois dias depois, os pesquisadores relataram gritos dos corvos e avistaram um peregrino adulto voando no meio do grupo dos corvos carregando um pedaço de alimento, sugerindo um episódio de cleptoparasitismo.
Discussão e conclusão
Brockman e Barnard (1979) enumeram algumas condições ecológicas que favorecem o desenvolvimento deste comportamento: deficiência de alimento primário, abundância de alimentos alternativos, recursos alimentares primários e alternativos escassos, grande concentração de hospedeiro e alimento visível. Além desses fatores, Paulsen (1985) considera que áreas abertas também contribuem para a ocorrência do cleptoparasitismo. Isso porque nestas áreas o cleptoparasita pode observar e encontrar os hospedeiros mais facilmente, a captura e transporte das presas tornam-se visíveis a grandes distâncias, o cleptoparasita dificilmente consegue se esconder e os itens predados podem ser facilmente encontrados quando são abandonados pelo hospedeiro.
Temeles e Wellicome (1992) avaliaram os efeitos das condições climáticas no comportamento social das aves de rapina na região de Britsh Columbia, Canadá. A pesquisa foi realizada de quatro a vinte sete de fevereiro de 1990, totalizando 37 horas em período diurno. Foram comparados dados relativos à presença de nevada na região sobre as espécies: Haliaeetus leucocephalus (Bald Eagle), Buteo lagopus (Rough-legged Hawks), Circus cyaneus (Northern Harriers) e Asio flammeus (short-eared Owls). A cobertura de neve aumentou drasticamente a freqüência de cleptoparasitismo em todas as espécies de rapinantes, sendo Circus cyaneus a espécie mais envolvida (Tabela 01). Foram relatadas 49 tentativas de roubo de presas: dois por Haliaeetus leucocephalus, 13 por Buteo lagopus, 34 por Circus cyaneus. As vítimas foram: um Buteo lagopus, 23 Circus cyaneus e 25 Asio flammeus. Também foram testemunhados, em quatro ocasiões, dois atentados simultâneos para roubo de uma mesma vítima e nove casos de tentativas de cleptoparasitismo seqüenciais: Buteo lagopus roubou uma presa de Asio flammeus e em seguida foi roubado por Circus cyaneus. Todas as presas capturadas pelos quatro rapinantes foram da mesma espécie de roedor (Microtus lownsendii).
Tabela 01 – Efeitos da neve no forrageamento de Circus cyaneus (Northern Harriers)
VARIÁVEL | NEVE |
PRESENTE | AUSENTE |
Tentativa de captura de presa | 28 | 44 |
Presas obtidas por caça | 12 | 1 |
Sucesso de captura | 12 | 1 |
Tentativa de cleptoparasitismo | 34 | 0 |
Sucesso de cleptoparasitismo | 17 | - |
Fonte: Temeles e Wellicome (1992)
Granzinolli (2003) avaliou a ecologia alimentar de Buteo albicaudatus no sudeste de Minas Gerais e constatou que no período de maior abundância de pequenos mamíferos (estação seca), ocorreu uma seletividade por parte do gavião. Entretanto na época de menor abundância desses pequenos mamíferos (estação chuvosa), houve um oportunismo por parte do predador. Tal oportunismo foi representado pela ingestão de presas menores do que as de costume, mas presentes em maior número. Mas seria razoável pensar que também possa ocorrer, em condições de baixa abundância de presas primárias, uma mudança de comportamento de caça, havendo, portanto, espaço para o cleptoparasitismo.
O alimento é um recurso crucial para todos os animais, pode-se considerar que a estrutura de uma comunidade baseia-se, em parte, na forma como o alimento é compartilhado entre as espécies, particularmente se o recurso é limitado (Andrew e Chritensen, 2001). O roubo de alimento, portanto, parece estar relacionado a condições adversas de subsistência como estações climáticas rigorosas ou a diminuição quantitativa e qualitativa das presas. Mas fica o questionamento: qual o papel das dispersões e deslocamentos regionais? Até que ponto a ave permanece em um ambiente desfavorável, sem ampliar sua área de caça? Segundo Granzinolli (2003) não existe no Brasil nenhum estudo enfocando respostas de Falconiformes em relação à disponibilidade de presas, havendo a necessidade de tais análises.
Referências
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Clark, W.S.; Schmitt, N.J. Red-Headed Falcon Pirates from Montagu’s harrier. Journal Field Ornithology, 64 (2): 244-245, 1993.
Clark, W.S., Bloom, P.H., Oliphant, L.W. Aplomado Falcon Steals Prey from Little Blue Heron. Journal Field Ornithology, 60 (3): 380-381, 1989.
Danko, S. and Mihók, J. Kleptoparasitism by raptors, focusing on the Imperial Eagle (Aquila heliaca). Slovak Raptor Journal, 1: 29-33, 2007.
Estella, R.R.; Rivera, R.L. Kleptoparasitism and other interactions of crested carcara in the Cape region, Baja California, Mexico. Journal Field Ornithology, 63 (2): 177-180, 1992.
Fischer, D.L. Piracy Behavior of wintering Bald Eagles. The Condor, 87: 246-251, 1985.
Frirz, H. Wind speed as a determinant of Kleptoparasitism by Eurasian Kestrel Falco tinnunculus on Short-eared Owl Asio Flammeus. Journal of Avian Biology, 9: 331-334, 1998.
Granzinolli, M.A.M. Ecologia alimentar do gavião-do-rabo-branco Buteo albicaudatus (Falconiformes: Accipitridae) no Município de Juiz de Fora, sudeste do estado de Minas Gerais. Dissertação de Mestrado, Instituto de Biociências, USP, Departamento de Ecologia, 136 p., 2003.
Jorge, D.G. and Lingle, G.R. Kleptoparasitism by Bald Eagles Wintering in south- central Nebraska. Journal Field Ornithology, 59 (2): 183-188, 1988.
Paulsen, D.R. The importance of open habitat to the occurrence of Kleptoparasitism. Auk 102: 637-639, 1985.
Raticliffe, D. The Peregrine Falcon, second Edition, T & A. D. Poyser, London, 1993.
Sobkowiak, S; Titman, R.D. Bald Eagle Killing American Coots and stealing coot carcasses from Greater Black backed Gulls. The Wilson Bulletin, 101 (3), 1989.
Temeles, E.J. and Wellicome, T.I. Weather-dependent Kleptoparasitism and Agression in a Raptor Guild. Auk, 109 (4): 920-923, 1992.
Watt, J.; Krausse, B.; Tinker, T.M. Bald Eagle Kleptoparasitising Sea Otter at Amchitka Island, Alaska. The Condor, 97: 588-590, 1995.
Zuberogoitia, I.; Iraeta, A.; Martínez, J.A. Kleptoparasitism by Peregrine Falcons on carrion crows. Ardeola, 49 (1): 103-104, 2002.