domingo, 17 de julho de 2011

Recuperação de um Uiraçú (Harpia harpyja, Accipitridae, AVES) na Reserva Particular do Patrimônio Natural REVECOM.

Paulo Roberto Neme do Amorim. Reserva Particular do Patrimônio Natural REVECOM, e-mail: revecombr@bno.com.br; Roberto da Rocha e Silva. Curso de Medicina Veterinária, Universidade Estácio de Sá, e-mail: rrochaesilva@gmail.com; Môsar Lemos, ABFPAR – Associação Brasileira de Falcoeiros e Preservação de Aves de Rapina, e-mail: lemosmosar@hotmail.com e Maria Lucia Barreto. NAL – Núcleo de Animais de Laboratório, UFF – Universidade Federal Fluminense, e-mail: mlbarreto@gmail.com  



INTRODUÇÃO
            A recuperação de aves de rapina encontradas feridas ou apreendidas pelos órgãos ambientais faz parte da rotina dos centros de triagem e recuperação de animais. Por suas características particulares as aves de rapina constituem um desafio especial, pois dependem da integridade de suas garras e capacidade de vôo, além de um excelente condicionamento físico para que possam retornar ao ambiente natural e sobreviver. Em alguns casos devido às seqüelas resultantes das condições anteriores à chegada ao centro de recuperação, o período de recuperação pode ser bastante longo ou a raridade da espécie justifique a sua retenção com propósitos de reprodução.
A RPPN REVECOM
Situada na margem esquerda do rio Amazonas no Estado do Amapá, Brasil, a Reserva Particular do Patrimônio Natural - REVECOM, possui cerca de 17 hectares com uma micro bacia completa (Igarapé Mangueirinha), e foi instituida pela Portaria nº. 54/98 – N – IBAMA, e considerada de utilidade pública através da Lei Nº. 1091, DE 29 DE MAIO DE 2007 do Governo do Estado do Amapá. Além de abrigar uma rica fauna representativa do bioma Amazônico vem sendo utilizada como centro de recuperação de animais silvestres da região e suas cercanias. Os animais mantidos na RPPN recebem atenção especial e aqueles que são para ali enviados pelo Batalhão Florestal (capturas e apreensões) são submetidos a um protocolo de triagem que envolve exames clínico,  microbiológicos e de habilidades que comprove suas condições físicas e mentais antes que sejam soltos de volta a seus ecossistemas naturais. O local também é usado em atividades de educação ambiental e atende as diversas escolas da região, e promove ainda cursos específicos para graduandos e graduados interessados em conservação de recursos naturais (Figuras 1,2 e 3).



Figura 1. Rio Amazonas no litoral do Estado do Amapá, onde está localizada a RPPN – REVECOM (um oásis verde no centro urbano do Porto de Santana).


Figura 2. Close-up na RPPN – REVECOM
  

Figura 3 Litoral do Amapá com o Rio Amazonas e o Oceano Atlântico
RELATO DE CASO
Uma fêmea de Uiraçu (Harpia harpyja) adulta foi encontrada por morador local no início de janeiro de 2007, numa estrada de terra próximo de uma mineradora de cromita, a 40km da localidade de Cupixi ou Vila Nova (Lat. 00°07'09,6"S e Long. 51°38'12,6"W), a cerca de 180 km de Macapá, capital do Estado do Amapá. Após 3 horas de viagem foi entregue na recepção da RPPN REVECOM, (documento de entrada n° 3147 - GEA - SEMA – CCF de 06/01/2007), tendo sido alojada para as primeiras observações No momento de sua captura a ave estava no chão, extremamente apática, não conseguia ficar em pé e ligeiramente enlameada (Figuras 4 e 5).  O exame clínico inicial revelou lesões na face interna da asa direita (com exposição articular ao nível do punho), região peitoral direita com importante perda de penas com exposição dérmica e abrasão, e corpo estranho sob a membrana nictitante, ceratite e episclerite traumáticas com infecção bacteriana secundária no olho direito. Os primeiros procedimentos constaram de hidratação e antibioticoterapia. As fezes inicialmente se apresentavam semilíquidas com muco, de cor esverdeada com filetes sanguinolentos. Como tratamento inicial foi administrado Sulfametoxazol com Trimetoprim (Bactrim) na posologia de 30mg/Kg duas vezes ao dia durante sete dias, com excelente resultado, considerando que as fezes voltaram à normalidade. As lesões da asa e região peitoral foram tratadas com banhos de uma mistura de solução fisiológica, iodo povidona e água oxigenada projetadas sob pressão com equipamento de bombeamento manual, sendo aplicado pomada fibrinolítica com cloranfenicol. A cicatrização das lesões dérmicas ocorreu por segunda intenção. No dia 20 de janeiro foi medicada com Albendazole (Albendazol) na razão de 10 mg/Kg em dose única, repetida após quinze dias. Como terapia inicial de suporte a ave recebeu ainda complexo vitamínico mineral durante 15 dias adicionado ao alimento e na água de bebida. A alimentação oferecida à ave nos primeiros dias constou de uma mistura de carne bovina desengordurada, fígado bovino cru e um purê de epífises de ossos de galinha, ad libitum diariamente. Após 10 dias, começou a rejeitar o alimento. Deixou-se então a ave em jejum por se entender que esse comportamento é normal já que a ave em vida livre experimenta algum jejum entre uma predação e outra. Em 27 de janeiro de 2007 estava bem ativa e eventualmente apresentava comportamento de filhote ao receber o alimento, abrindo parcialmente as asas. Exercitava os pés alternando-os no apoio aos poleiros. Também mudava de poleiro regularmente, de diâmetro médio para um tronco. Quanto a suas interações com o entorno demonstrava interesse por uma preguiça (Choloepus sp) e por um jupará (Potus flavus) que estavam alojados nas proximidades, o mesmo ocorrendo em relação a um filhote de guariba (Alouatta sp). Abaixava todas as penas do penacho e a cabeça, como se fosse voar e apanhar a presa. Não ligava para uma arara (quase sem penas) que passeava pela área próxima ao abrigo. Em 27 de janeiro a ave já apresentava sinais de estar recuperando suas forças rapidamente. Já não aceitava que lhe tocassem o dorso. Desde o dia 25 de janeiro tentava exercitar as asas. A lesão ocular cicatrizou após 20 dias de tratamento com pomada oftálmica (Maxitrol) e água boricada. Em 1º. de março a ave estava recuperada e foi transferida para o novo recinto, construído de acordo com o modelo REVECOM, em 14 de abril, onde começou a se exercitar e mostrou-se totalmente apta para vôo e adaptada ao novo recinto após 10 dias (Figuras 6 e 7). O voo era estimulado pelo fornecimento de ratos brancos vivos colocados no interior do viveiro.






Figura 4 e 5. Uiraçu no dia em que chegou a REVECOM.





  
Figura 6 e 7. Uiraçu instalado no viveiro após tratamento.
CONSERVAÇÃO DA HARPIA.
A conservação de grandes predadores vai se tornando cada vez mais difícil não por falta de áreas protegidas, mas devido às suas restritas extensões ou fragmentações. Grandes predadores alados como o uiraçu (Harpia harpyja), gavião pega-macaco (Spyzaetus tyranus) e gavião-de-penacho (Spyzaetus ornatus) necessitam de vastas áreas bem conservadas para sua sobrevivência (WILLIS, 1979). É fato que muitos deles já desapareceram em algumas regiões onde embora existam florestas, elas não atendem às suas necessidades. É um erro acreditar que a existência de áreas protegidas (unidades de conservação) represente uma segurança para a preservação de espécies mais exigentes. O mesmo ocorre com alguns mamíferos como o jaguar (Panthera onca), a anta (Tapirus terrestris), a queixada (Tayassu pecari), o caititu (Pecari tajacu), o tamanduá bandeira (Myrmecophaga tridactyla) e o tatu-canastra (Priodontes maximus) (CHIARELLO, 2000).  O que importa mais é a extensão da área. No caso dessas espécies mais exigentes elas precisam de grandes áreas protegidas e sem fragmentações porque a fragmentação impede que boa parte de suas presas sobreviva neste ambiente alterado.
Embora existam informações que indiquem a possibilidade de sobrevivência desses grandes predadores em áreas próximas de comunidades e isso signifique a, a nosso ver, uma tentativa de se ajustar às condições locais, não temos ainda monitoramento de longo prazo para avaliar exatamente o quanto essas mudanças podem influenciar as atuais e futuras gerações de uiraçus. É fato, por exemplo, que o desmatamento interfere tanto em sua nidificação quanto na capacidade de criar os filhotes. A degradação dos ecossistemas por interferência humana leva ao desaparecimento dos mamíferos mais utilizados em sua dieta. É possível que com a escassez de animais selvagens na região a ave passe a caçar animais domésticos, como ocorre com as onças. Esse fato faz com que a população considere a ave como inimiga, abatendo-a para evitar prejuízos, e também devido ao porte do animal, que é considerado um troféu de caça. A caça ilegal, a perseguição e a comercialização devem ser consideradas como ameaças reais. Na Amazônia as aves de rapina de grande porte são caçadas para alimentação, o que se torna um problema grave, pois o uiraçu é uma ave rara e que amadurece tardiamente, sendo os indivíduos adultos cruciais para a estabilidade populacional. (CHIARELLO, 2000; ICMBIO, 2008). De acordo com a Lista da Fauna Brasileira Ameaçada de Extinção, a espécie está inserida na categoria Quase Ameaçada em nível nacional (MACHADO et al. 2005). Entretanto, a situação da espécie na Mata Atlântica é muito mais grave, estando citada em listas vermelhas estaduais do sul e sudeste: “Provavelmente Extinta” no Rio Grande do Sul (MARQUES et al. 2002), “Criticamente em Perigo” em Minas Gerais (DRUMMOND et al, 2008); no Paraná (MIKICH e BÉRNILS 2004), São Paulo (SILVEIRA et al, 2009) e Espírito Santo (SIMON et al, 2007); e “Em Perigo” no Rio de Janeiro (ALVES et al. 2000).
REGISTROS MAIS RECENTES DE Harpya harpyja NO BRASIL
            Os registros mais recentes do uiraçu estão concentrados nas grandes áreas preservadas da região Norte do país (Quadro 3). Vargas et al (2006) registrou 21 ninhos da espécie na Amazônia. Estes registros segundo o ICMBio (2008) são de Galetti et al (1997), Borges et al (2001), Marigo (2002), Silveira (2002), Henriques et al (2003), Pacheco et al (2003), Pires et al (2003), Santos (2003), Luz (2005), Silveira et al (2005), Pivatto et al (2006), Olmos et al (2006) e  Vargas et al (2006)
Quadro 3. Registros mais recentes de Harpya harpyja no Brasil

ESTADO
LOCAL DO REGISTRO
ANO
Acre
Sena Madureira
2006
Amapá
Vila Nova (Lat. 00°07'09,6"S e Long. 51°38'12,6"W)
2007
Amazonas
PARNA Jaú, REDES Mamirauá
2001, 2006

Pará
Rio Trombetas, RESEX Tapajós-Arapiuns, FLONA Tapajós, Moju (Agropalma), Paragominas (Fazenda Cauaxi), PE do Cristalino.
2003, 2005, 2006
Roraima
ESEC Maracá, PARNA Viruá
1985, 2003
Mato Grosso
Ricardo Franco (Serra), Vila Bela da Santissima Trindade
2002
Mato Grosso do Sul
Serra da Bodoquena (Fazenda Salobra), PARNA Serra da Bodoquena
2006
Bahia
Serra das Lontras, PARNA Pau Brasil
1991, 2005
Espírito Santo
Pedro Canário, REBIO Sooretama, REFLO Linhares (CVRD), REBIO Augusto Rischi
1997, 2000, 2003, 2006
Minas Gerais
RPPN Feliciano Miguel Abdala, PE do Rio Doce, Tapira (comunidade de Palmeiras), Fazenda Montes Claros
2002, 2006
Rio de Janeiro
PARNA Itatiaia, PARNA Serra dos Órgãos, PE Serra do Mar
2000, 2002, 2003
São Paulo
Cananéia, Ariri
1989, 1993
Santa Catarina
PE Tabuleiro
1995


CONCLUSÃO
            Não há dúvidas que a recuperação e manutenção de aves de rapina em cativeiro pode se tornar um grande desafio para seus reabilitadores, especialmente quando se trata de aves do porte do uiraçu, que exige maiores espaços e maior habilidade e experiência no manejo. No presente caso a situação inicial da ave favoreceu a rápida recuperação, pois estruturas importantes como as asas e as garras não sofreram danos irreversíveis. A disponibilidade de um recinto adequado é um fator decisivo no processo de recuperação, quando não se pode optar pelo uso da técnica de falcoaria, na qual a ave permanece sobre poleiros adequados, restringida por correias de couro e são exercitadas diariamente em saltos verticais seguidos de vôos livres até que atinjam condição muscular e autoconfiança suficiente para retorno ao ambiente natural.
AGRADECIMENTOS
A equipe da RPPN REVECOM pelo esforço empregado para a plena recuperação do uiraçu.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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MIKICH, S.B. & R.S. BÉRNILS. 2004. Livro vermelho da fauna ameaçada no estado do Paraná. Disponível na World Wide Web em: http://www.pr.gov.br/iap
PERES, C.A; BARLOW, J; HAUGAASEN, T. Vertebrate responses to surface wildfire in a central Amazonian forest. Oryx, v.37, n.1, p.97-1 09, 2003.
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SILVEIRA, L. F et al. Aves. In: BRESSAN, P.M et al. Fauna ameaçada de extinção no estado de São Paulo: Vertebrados. São Paulo: Fundação Parque Zoológico de São Paulo e Secretaria de Meio Ambiente. 2009
SIMON, J. E et al. As aves ameaçadas de extinção no estado do Espírito Santo. In MENDES, S.L e PASSAMANI, M (org). Livro Vermelho das espécies da fauna ameaçadas de extinção no estado do Espírito Santo. Vitória: IPEMA, 2007.

Publicado na Revista SPIZAETUS (N. 10 DEz/2010)